UM LANCE DE DADOS

A III Mostra Multi da UFOP acontecerá em dezembro de 2022 e terá como tema a frase “um lance de dados”, inspirada no poema publicado por Stéphane Mallarmé (1842-1898) nos últimos anos do século XIX. A língua portuguesa nos permite fazer um trocadilho*, do qual nos servimos para aproximar a ideia do jogo de dados (incerteza da sorte, acaso, destino) presente no poema, com um dos principais commodities da economia em nosso tempo: os dados, matéria-prima da informação. Dados pessoais, de comportamentos de grupos, de fenômenos naturais ou artificiais. Dados passíveis de serem minerados, sistematizados e a partir dos quais se determinam imagens aparentemente muito precisas do real.

* Esse trocadilho não é possível em francês, língua em que o poema foi escrito. Neste idioma, a palavra “dados” na acepção do objeto físico, frequentemente cubos com números em suas faces, se traduz por “dés”. “Dados” com o sentido de unidade mínima da informação se traduz por “donnés”.

“Um lance de dados jamais abolirá o acaso” (“Un coup de dés jamais n’abolirá le hasard“) é uma daquelas obras de arte que marca um momento de ruptura em seu tempo. Augusto de Campos diz que assim como Rimbaud, Mallarmé recusa a viver o mundo que rejeita (CAMPOS, 1991). Ele extrapola esse mundo pelo fazer poético, trazendo o branco do suporte (do papel) para o primeiro plano da composição. Lança mão da tecnologia de imprensa disponível para experimentar estruturas formais no processo de construção da obra literária. Até então o verso nunca havia sido tão livre, capaz de aparecer em dimensões e em tipos diversos, de se espalhar no espaço gráfico e de prescindir até mesmo de encadeamento lógico de significados.

Exemplos de uma página do poema, em português (trad. de Márcio Freire) e em francês.

Mallarmé não abandona o mundo que rejeita. Extrapolar quer dizer carregar os limites desse mundo um pouco mais para além. Nesse sentido, ele avança sobre normas e costumes, e alcança um espaço estético novo, passível de ser ocupado, experimentado e novamente extrapolado. É mais ou menos isso que acontece nas rupturas produzidas pelas vanguardas modernistas na primeira metade do século XX.

Neste poema Mallarmé fez um movimento importante para o desenvolvimento de uma vertente de pesquisa sobre as estruturas formais das obras de arte. Pesquisas que são realizadas no próprio fazer artístico e que combinam sons, silêncios, vazios, formas, cores… trazem o suporte para o campo de evidência e chegam ao cúmulo de violentá-los, como o fez Lucio Fontana em meados do século passado ao esfaquear o suporte.

Veja abaixo um vídeo “Toda revolução é um lance de dados”, de STRAUB & HUILLET, de 1977. O filme é dedicado aos mortos da Comuna de Paris (maio de 1871) e traz uma leitura do poema de Mallarmé (nas legendas em português temos a tradução feita por Haroldo de Campos).

Mas o que isso tem a ver com a forma como os dados são minerados em nosso tempo? A não ser a parte do trocadilho, é verdade que há muito pouco a se dizer diante dessa questão. Sempre é possível apelar para paralelismos entre a arte moderna e a arte feita em meios digitais. Em algum sentido, até a própria arte em ASCII pode ser considerada herdeira da poesia concreta. Alguns artistas escrevem textos poéticos em código, que fazem sentido para quem conhece a estrutura da linguagem de programação utilizada (veja abaixo um exemplo de poema em Python). Outros tipos de poemas podem ser efetivamente compilados, alcançando resultados muito interessantes. Veja aqui o site do projeto code-poetry para ter uma ideia.

THE POEM ( IN PYTHON) (PYTHON RECIPE), de Marcelo Bontempo Salgueiro, escrito em 2008. Fonte: ActiveState Code.

Certamente há um caminho entre o lance de dados de Mallarmé e as muitas possibilidades de combinação de linguagens artísticas em suporte digital. Além disso, a discussão sobre a estrutura sintática dos objetos de arte que foi colocada por Mallarmé é extremamente atual quando flanamos entre as diferentes camadas de linguagem entre as pessoas e as máquinas. Mas esperamos um pouco mais dessa aproximação. Nosso desejo também é estimular uma reflexão crítica sobre os dados como parte de um sistema de controle social.

Quando falamos em lance de dados, cento e vinte e cinco anos depois de Mallarmé, estamos vislumbrando outra realidade. É muito significativo quando o ex-agente da CIA e da NSA, Edward Snowden, descreve o trabalho de espionagem nos primeiros anos do século XXI:

… participei da mudança mais significativa da história da espionagem estadunidense – da vigilância direcionada a indivíduos à vigilância em massa de populações inteiras. Ajudei a tornar tecnologicamente viável que um único governo coletasse todas as comunicações digitais do mundo, que as armazenasse por eras e fizesse buscas nelas à vontade.” (Snowden, 2019). 

O grande lance das estruturas de poder no contexto das tecnologias de informação são os dados. Mais do que instrumentos que vislumbram o consumo de mercadorias, uma boa estratégia de uso permite construir um sistema de predição de comportamentos capaz de possibilitar o controle de populações inteiras.

A diferença entre predição e prescrição de ideias e comportamentos é de apenas algumas letras, e a Mostra Multi segue em seu esforço para repercutir questões atuais da cibercultura na comunidade da UFOP. Assim como Mallarmé, que percebeu que a arte da vida moderna passava pela articulação dos recursos técnicos disponíveis, da mesma forma nos questionamos sobre o que podemos produzir considerando ferramentas digitais. Participe conosco!

Se você se interessar em saber mais sobre o poema de Mallarmé, pode acessar aqui o poema em francês (na versão original, de 1896). Pode também acessar este vídeo, que traz uma legenda em português. Além disso, usamos como referência os seguintes livros:

  1. Um lance de dados nunca abolirá o acaso – dossiê. Organização e notas: Márcio Freire. AllPrint Editora, 2019.
  2. Mallarmé. Augusto de Campos, Décio Pignatari e Haroldo de Campos. Coleção Signos, Editora Perspectiva, 1991.

Se você tiver interesse em saber mais sobre a história de Edward Snowden, indicamos seu livro Eterna Vigilância, trad. de Sandra Martha Dolinsky. São Paulo: Editora Planeta, 2019.